furacão, tempestade e terremoto não traduzem o amor
o título faz referência a música “princesa” de Mestre Anderson Miguel.

amanheci depois de um longo passeio no centro da cidade, já era tarde da noite quando nos falamos por mensagem e você me disse em inglês que eu poderia te encontrar depois que você saísse do cinema.

era sua última noite naquele país, você voltaria pra sua casa, lugar onde sua família migrou e em tentativas contínuas ainda tentava se assentar.

eu, que não falava inglês, traduzi com a empolgação de quem come um doce, suas simples palavras, quase pedindo para a moça do google imprimir as minhas frases do português para o inglês, em uma investida para que nossa comunicação se balanceasse em uma porcentagem maior.

após confirmar minha ida, me arrumei com a melhor roupa que tinha, um macacão azul, e peguei o metrô para ir até o centro da cidade. percebi que o mapa não me ajudava e as informações em espanhol acabavam sendo dribles entre as ruas que eu caminhava. chamei um táxi, olhei meu pulso e vi que já estava 1h atrasada.

te encontrei finalmente, o céu estava tão escuro quanto seus olhos, extremamente negros, mas com um brilho que acamalva o corpo de quem estivera atravessando uma cidade em estado de correria. foram segundos para perceber que não falavamos a mesma língua,você não falava o portunhol que eu arranhava, eu não falava o inglês que você havia aprendido na travessia de Acra para Nova York.

nós duas fizemos um gesto que parecia ser de fome, agora já era quase meia-noite e quase nenhum estabelecimento estava aberto. achamos um cachorro-quente de esquina e vi você comer vorazmente enquanto eu tentava achar um jeito de falar com você. foi uma noite de muito silêncio entre nossas bocas. los boleros más romanticos eram as únicas coisas que ecoavam.

terminando o jantar, continuamos caminhando pela praça principal, resolvemos recorrer ao google e nos perguntamos uma pra outra pela voz do google tradutor como sentíamos estar descoladas de uma normatividades em nossos países de nascimento. falávamos por uma voz que não era nossa sobre as pessoas que admiramos e também sobre o medo e a astúcia em estar sozinha pela primeira vez experimentando transitar longe de casa. as sensações que trocamos não rasgaram traduções convencionais e nos mostraram uma bagagem gestual e espiritual que nos fizeram falar mesmo sem entender cada palavra dita.

uma mulher mais velha passou e falou do nosso cabelo tentando tocá-los, nossa fuga foi a deixa para irmos para um canto de uma igreja, sua grande porta fechada ainda impunha as dores invasão espanhola naquele território. nos olhamos, o celular já não nos mediava, recusamos qualquer distração. as nossas mãos agora podiam se tocar, quando chegaram a altura de nossas bocas nos fizemos estalar em um beijo. uma de nós usava um batom de pimenta. rimos por longos minutos.

depois daquela noite, não nos vimos mais. pedi dentro de mim: no me olvides.

Nós conduzimos uma a outra por nossos sussurros
na Bica Plataforma
2021