Arqueia mas não quebra


Galeria Almeida e Dale - 2023

Em diversas histórias da cultura oral maranhense, São Benedito teria sido um homem negro escravizado que, numa noite de lua cheia, adentra a mata, corta um tronco de árvore, volta à senzala e, com a madeira extraída, cria um tambor e ensina outras pessoas negras escravizadas a construir e tocar tambores.

Essa narrativa é um dos “contos que se contam” sobre a criação do Tambor de Crioula no estado do Maranhão. O uso da madeira como matéria-prima para construir tambores e outros instrumentos de percussão persiste até hoje em diferentes comunidades do Brasil. "Arquear sem quebrar" refere-se a um tipo de manejo exaustivo da matéria — uma das tecnologias ancestrais utilizadas na fabricação de instrumentos percussivos. Mestres e mestras manipulam diferentes tipos de madeira, azumbrando suas fibras, assim como o vento, que busca a flexibilidade na rigidez, reencontrando pulsões a partir de uma coreografia que beira a fronteira de sua destruição.

Numa dobra conceitual que avança nos séculos, a imagem da matéria arqueando encontra eco na obra Para ser curvada com os olhos (1970), de Cildo Meireles. O trabalho apresenta uma provocação: duas barras de ferro — uma reta e outra curva — são apresentadas dentro de uma caixa com os dizeres: "duas barras de ferro iguais e curvas". O objeto foi pensado para ser exaustivamente exposto, de modo que sua contínua aparição pública poderia dar testemunho da força física do olhar, que, afinal, poderia cumprir literalmente a sugestão do título da obra.

Pensar essa manipulação da matéria, física e imaginativa, pode suscitar reflexões sobre as possibilidades de transformação do corpo — que estica, enverga, flexiona —, mas também sobre noções ampliadas que envolvem dinâmicas de transmutações, hibridismos e conexões insólitas mediante certas infusões de energia. Sob a força das práticas de tensionamento da matéria em seu limite existencial, estabeleceu-se aqui o encontro de trabalhos que abeiram fronteiras — sejam elas materiais, fisiológicas, mentais ou sociais — e que abraçam o risco na busca pela reinvenção e pela produção de novas forças vitais.

Entre formas que invocam a magia, movimentos que incorporam a capacidade elástica de diversos materiais, naturezas orgânicas e sintéticas em transmutação, e suas paisagens, feras e afetos possíveis, cabe agora a relação corpo a corpo com o que está aqui reunido, criando dobras e arcos com o olhar, tensionando os sentidos, ampliando ou reduzindo as distâncias temporais e espaciais. Por certo, a partir desses exercícios, cada trabalho exposto pode se transformar na medida das intenções daqueles que os observarem. Do mesmo modo, aqueles que os transformarem, fatalmente sairão “arqueados”.


Ariana Nuala, Germano Dushá e Rafael RG