Em uma conversa com Abiniel, ele me dizia sobre uma rota que faziam as antigas mulheres indígenas, não me recordo exatamente como ele soube disso, se foi conversando com pessoas mais velhas ou através de arquivos, porém, o que importa é que este pequeno vislumbre de uma possível travessia, já anuncia andanças que dobram mapas. A rota que se formava através da navegação, possivelmente dentro de um pequeno barco até o outro lado do Atlântico com mulheres indígenas dentro que iam em busca de histórias, ervas ou qualquer outra coisa que pudesse ser útil para sua comunidade, enquanto pessoas indígenas navegantes e guiadas pelas ciências que estão no fundo do mar.

Não contenho as confirmações sobre esse relato, mas é inegável as frestas que essa imagem abre no imaginário, um encontro entre indígenas originários e africanos antes da violência colonial. Relações de troca que estão fora dos arquivos e que hoje se tornam escorregadias entre as lembranças. O retorno a essa conversa faz parte de um conjunto de vestígios que observo e compartilho com o artista. Vestígios esses são suficientemente fortes para a formulação de novas rotas que buscam reafirmar os saberes de povos que tiveram em sua vida sinais de sua própria obliteração.

Em também travessia sobre o Atlântico, o artista Abiniel J. Nascimento, coleta reminiscências de encontros que continuam a acontecer, mas que revelam, em suas camadas, as sobreposições entre as línguas e as constantes migrações para o território francês. Fluxos estes que consigo trazem não apenas corpos, mas também diferentes formas de criar e existir no mundo. Ao desenvolver peças que serão compartilhadas na exposição, Abiniel observa nesses resquícios práticas de não esquecimento que podem estar tanto em objetos encontrados em bazares e retirados de sua função “natural”, quanto em lampejos oníricos que formulam uma língua entre reinos, a comunicação entre bichos, plantas, fungos, pedras e seres humanos, disfuncional para o modelo capitalista vigente.

A rota traçada pelo artista faz em seu primeiro movimento a recusa, retirando a possibilidade da obtenção de pequenas estatuetas para seu uso comumente decorativo. As estatuetas, situadas simbolicamente são esses outros fragmentos de um pensamento vigente de apropriação do outro, a continuação da ideia de objeto etnográfico e do poderio de quem obtém determinadas coleções, aqui distorcidas para uma camada kitsch, como um objeto barato para decorar lares. A instalação/performance The ocean way /O jeito do oceano se faz no banho de sal onde o artista afunda as imagens, devolvendo o direito de sua opacidade ao que foi exageradamente exibido.

A escrita também é uma matéria borrada, em Além-Aquém-Aqui ela se enche de ar, possibilitando dar nuance as formas que acompanham o pensamento/corpo do artista. Como caminhadas a serem feitas, a escrita traça idas e vindas, uma pequena proposta sobre as fraturas ainda causadas pela colonialidade, a hierarquização entre seres, territórios e corpos. Ao acionar mais de uma perspectiva ao apresentar uma bandeira, o artista desmascara a unicidade histórica que acompanha as narrativas, determinando a escuta de laivos e vozes que foram colocados abaixo deste instrumento demarcador.

Além-Aquém-Aqui é um convite a perceber rastros latentes, que em sua verdade, estão escancarados em ruas e esquinas, mas que não são visíveis pelos silêncios que camuflam as práticas que elaboram palavras. Palavras estas que atravessam várias línguas e desmobilizam distâncias.

Além. Aquém. Aqui.
Abiniel João Nascimento
Centre d'Art Contemporain Paradise - 2022